segunda-feira, março 14

Malcriacao ou preconceito?

Tô eu aqui, trintona, recomeçando a minha vida do outro lado do mundo.
Um marido, duas filhas e um gato. Alguns amigos escolhidos a dedo, um emprego assim, assim...
Pois estou eu trabalhando toda animadinha, sexta feira, último dia da semana, até final de semana tão esperado...
Ai faço uma ligação para o rapaz que despacha o frete para as vans...aqui chamado despachante.

Pois ligo para o despachante - que é gago...já imaginou um cara que trabalha com um telefone, um rádio amador e dois celulares tudo falando ao mesmo tempo, gaguejando,pois esse e o nosso personagem -VERÍDICO de hoje.
O Ian é um cara engraçado. Competente sim senhor, carrancudo com certeza e fala tudo enrolado, além de gaguejar. Parece que para lidar com os motoristas todos (mais de 20) a coisa funciona direitinho.
Mas sem desviar do assunto, ligo eu lá para o desinfeliz.

- Oi Ian.Preciso saber que horas o motorista tal vai levar o pacote do banco alemão.
- Que?
-Preciso saber que horas o motorista tal vai levar o pacote do banco alemão
-Ah?
-Preciso saber que horas o motorista tal vai levar o pacote do banco alemão
-Peraí...que foi mesmo?
-Preciso saber que horas o motorista tal vai levar o pacote do banco alemão.
-Não tô entendendo.
-Deixa que eu soletro para você então...P-r-e-c-i-s-o s-a-b-e-r q-u-e h-o-r-a-s o m-o-t-o-r-i-s-t-a t-a-l v-a-i l-e-v-a-r o p-a-c-o-t-e d-o b-a-n-c-o a-l-e-m-ã-o
-Ah... o pacote do banco alemão...e esse seu sotaque que mata o nome do banco...
silêncio mortal.
Respiração acelerada.

Desligo o telefone sem dizer muito mais, além de um seu sotaque e que é horrível, ou coisa que o valha. Nem citei a gagueira. Moça de família, não joga merda no ventilador, certo???
Meu pulso disparado, meu coração querendo sair pela garganta. Não conseguia nem escrever por que as minhas mãos não paravam de tremer.
Meu sotaque mata o nome do banco a PQP (como diria a minha educadíssima mãe, para evitar um bom puta que o pariu...).
Não tive dúvidas, fui falar com o meu gerente, que estava num curso, a sub-gerente estava no telefone. Passei a mão no meu telefone e liguei para o gerente imediato do tal gago, digo despachante.
Contei a estória e disse que eu não admito discriminação. Repito mil vezes se necessário, mas não ouço baboseiras. Nem dele e nem de ninguém.
O gerente fala com ele, volta a falar comigo, vem com aquela conversa sem graça de: mas veja bem, o seu sotaque é mesmo diferente, e e difícil para algumas pessoas entenderem o que você diz...
e eu mantendo firme a minha posição:
- Repito mil vezes, mas não ouço desaforo.Malcriação não. Ou ele se desculpa ou eu levo essa estória as ultimas conseqüências. Discriminação é crime. Previsto em lei.
Nesse meio tempo uma amiga chinesa - povo mais discriminado aqui na Oceania, veio falar comigo:
- Eu já passei por isso muitas vezes. Você é melhor que isso. Não liga não. Faça como eu, mostre que você é competente e deixa essa estória para lá.
- Não posso Nancy, preciso mostrar para essas pessoas que isso não e legal...
- Mas vc sabe que isso vai prejudicar o seu trabalho e a sua relação profissional com os locais, não sabe??? Só você vai sair prejudicada. E melhor deixar para lá.
Foi aí que o meu sangue ferveu de uma vez...eu nem me lembrava mais do pobre do Ian, só via a tal chinesa na minha frente. Vontade de meter a dita cuja no avião e mandar de volta para casa.
Juntei as minhas ultimas forcas e gritei com toda a forca dos meus pulmões:
- Você já passou por isso, é? e ficou quieta é? Para não estragar a sua relação profissional com os nativos?
Pois então a culpa do Ian ter sido um imbecil comigo é toda sua. Se você tivesse se defendido, eu não teria que passar por isso hoje. E os seus filhos vão dever a mim e a pessoas como eu, o direito de ser respeitados pelas diferenças.Você é uma covardona.Uma egoísta e acabou de me ferrar por que deixa as pessoas te discriminarem...
Saí da sala chorando. De raiva dessa fulana e de todas as outras fulanas que não brigam pelos seus direitos e que fazem a minha vida mais difícil e esse mundo um lugar pior para se morar.
O final da estória do Ian é que tivemos uma reunião formal com os dois gerentes - o meu e o dele - onde ele se desculpou oficialmente.
E eu desculpei.
E se a nossa relação profissional ficar uma porcaria, azar o dele, que vai ter que me engolir e a todos os outros imigrantes.
Aproveitei a onda de descontentamento e fui ao gerente de recursos humanos exigir um programa de educação sobre imigração e as diferenças entre raças/culturas/educação.
A partir do começo do ano que vem, isso vai fazer parte do programa de treinamento dos novos funcionários, e nós vamos desenvolver um programa para os funcionários que já estão lá.
VITÓRIA!!! VITÓRIA!!!!
E nem precisa me agradecer, dona Nancy.

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